Valor Econômico
Segundo Ha-Joon Chang, nenhuma
teoria econômica dá conta de explicar todos os países, o que torna necessário
recorrer a múltiplas referências
Ha-Joon
Chang é um dos mais ativos representantes da economia institucional. Seus
livros de títulos provocativos - "Maus Samaritanos" (2008), "23
Things They Don't Tell You About Capitalism" (2011) - oferecem explicações
incomuns para o funcionamento da economia. Em "Chutando a Escada"
(2004), Chang argumenta que os países desenvolvidos enriqueceram com políticas
heterodoxas e, ao recomendar medidas ortodoxas aos emergentes, "chutam a
escada" que os levaria à mesma riqueza. Leia a seguir os principais
trechos da entrevista.
Valor: O senhor afirma que a teoria
econômica está presa em moldes estreitos. Como se poderiam romper esses moldes?
Ha-Joon
Chang: Temos
operado numa dicotomia entre Estado e mercado. Isso é muito redutor, porque
mercados funcionais precisam de Estados funcionais e vice-versa. Ao mostrar que
Estados e mercados são só duas, dentre muitas formas institucionais
alternativas de organização da atividade econômica, incluindo firmas
capitalistas, cooperativas, associações industriais, cartéis, sindicatos etc.,
e que há muitas complementaridades entre as instituições, a economia
institucional revela que a estreita dicotomia mercado-Estado ajuda pouco a
entender o mundo real. Quando conseguirmos entender a diversidade e a
complementaridade das instituições, incluindo o Estado e o mercado, estaremos
menos expostos a dogmas extremistas, como o livre mercado e o planejamento
estatal, e poderemos conduzir políticas mais pragmáticas, que aumentariam a
probabilidade de sucesso no desenvolvimento.
Valor: O senhor argumenta que o
mercado financeiro é estruturalmente falho. Considerando a dependência que a
economia mundial tem das finanças, isso quer dizer que estamos diante de algo
muito além de apenas uma crise?
Chang: Temo que estejamos. Os
proponentes da finança desregulada argumentam que a crise de 2008 foi um evento
único, algo que ninguém poderia ter previsto e, portanto, o sistema só precisa
de mudanças marginais, como mais transparência e maiores exigências de
capitalização. Acontece que a crise atual é o resultado de 30 anos de desregulação,
que criou um sistema tão complexo que não temos mais como controlá-lo. Uma
resposta comum, já sugerida por Alan Greenspan, é que o sistema financeiro
ficou complexo demais para qualquer regulação. Mas esse é um argumento pouco
engenhoso. É claro que poderíamos simplificar o sistema financeiro. Se banirmos
alguns instrumentos complicados demais e regularmos outros mais rigidamente, o
sistema vai se tornar muito mais simples e fácil de regular.
Valor: O senhor é influenciado por
autores de todo o espectro ideológico, desde os austríacos até os marxistas,
passando pelos keynesianos e os neoclássicos. A versatilidade faz falta às
análises econômicas dos eventos recentes?
Chang: O argumento mais poderoso a
favor do ecletismo intelectual está no mundo real, que não pode ser entendido
com uma única teoria. O melhor exemplo é Cingapura. As pessoas só conhecem
Cingapura como um país de livre comércio, receptivo ao investimento direto
estrangeiro. Poucos sabem que o governo é dono de toda a terra, que 85% da moradia
é fornecida pela empresa imobiliária estatal, que mais de 20% da produção
industrial do país é estatal. Se alguém inventasse uma economia plenamente
funcional com base em uma única teoria, poderia imaginar algo como Cingapura? É
claro que não. O país combina os elementos mais extremos do mercado livre e do
socialismo. Deveríamos aceitar que diferentes teorias iluminam diferentes
problemas.
Valor: Como se relacionam a esfera
da política e a da economia, neste momento em que crise política e crise
econômica se confundem nos Estados Unidos e na Europa?
Chang: É impossível separar economia e
política. O problema da dívida europeia não é puramente econômico, porque sua
origem é em parte política e sua solução, ou falta de solução, também. Por
exemplo, a decisão de incluir os países mais fracos, "periféricos",
na zona do euro foi uma decisão política. A falta de solução da crise é
resultado, em grande medida, de questões de cunho político, porque se determina
pela recusa dos países europeus mais ricos a criar uma união fiscal plena, além
da recusa a deixar que seus próprios bancos arquem com alguns custos do ajuste.
Valor: O senhor afirma que, nas
últimas décadas, a economia mundial se organizou de tal forma que os países
ricos ditavam aos pobres o que fazer. Agora que os ricos estão atolados e os
emergentes brilham, o que podemos esperar?
Chang: Desde os anos 1980, os países
ricos passaram a impor uma série de medidas, conhecidas como Consenso de
Washington, através de ajuda bilateral e instituições de empréstimo. Esse
domínio tem se enfraquecido, não só porque os ricos estão estagnados e muitos
emergentes vêm crescendo desde a crise de 2008. Já na virada do século, certos
emergentes, particularmente os latino-americanos, começaram a se afastar do
Consenso de Washington. Essas políticas se revelaram ineficazes nos anos 1980 e
1990. Outro motivo foi que a China começou a aumentar sua influência,
oferecendo ajuda financeira para os emergentes. Agora os emergentes têm uma
fonte alternativa de financiamento e não precisam obedecer cegamente. Mas acho
prematuro prever uma nova ordem mundial. As economias ricas ainda somam 75% da
economia mundial, controlam as principais tecnologias, têm influencia
desproporcional nas agências internacionais e possuem um estoque fenomenal de
"soft power". Tampouco há garantias de que países como a China e a
Índia vão continuar crescendo tão rápido, já que têm problemas internos
enormes, especialmente a desigualdade.
Valor: Impedir os emergentes de usar
os mesmos meios que serviram aos ricos para crescer é uma estratégia deliberada
dos países desenvolvidos ou fruto de ideologia?
Chang: Há muitas motivações por trás do
"chutar a escada". Em alguns países, se faz isso por convicção
ideológica: acredita-se que é um modo de ajudar os emergentes, com imposição do
liberalismo. Outros são pautados por interesses corporativos, como lobbies que
exigem do governo a abertura de mercados em países específicos. Outros querem
impedir o surgimento de um "outro Japão" - embora o próprio Japão,
hoje, chute escadas. O interessante é que, sejam quais forem seus motivos, as
pessoas não conhecem a história de seus próprios países e pensam que os países
ricos enriqueceram graças ao liberalismo. Uma minoria reconhece que, em alguns
países, os subsídios foram usados, mas argumentam que teriam crescido ainda
mais sem essas políticas, ou então que "os tempos mudaram" e aquelas
políticas já não têm a mesma validade.
Valor: Um governo forte demais, no
outro extremo, também não parece ser a solução.
: Há muitos exemplos de
intervenção estatal que falhou, mas muitas das supostas falhas não o são de
verdade. Por exemplo, neoliberais costumam argumentar que a industrialização
por substituição de importações foi um desastre na América Latina. Mas o
crescimento per capita na região costumava ser de 3,1% por ano, e depois de
1980 foi de só 1,1%. É claro que a solução não é "mais governo". A
combinação perfeita de intervenção estatal, liberdade do mercado e outras
instituições (como firmas) só pode ser decidida de acordo com a realidade de
cada país. Cada um tem suas condições naturais, estruturas econômicas, sistemas
políticos e valores morais. Não existe um sistema universal.
Valor: A ideologia do mercado
desregulado foi dominante por 30 anos. Agora que o sistema financeiro está em
crise, existe algum outro sistema à vista?
Chang: A crise atual forçou muitos
neoliberais a aceitar que algumas reformas precisam ser feitas. Mas ainda há
muitos defensores do sistema que não cedem, seja por convicção ideológica, seja
porque sua riqueza e poder estão em jogo. Em alguns países, tiveram sucesso em
usar a crise para aprofundar políticas neoliberais. Veja-se o Reino Unido, que
usou o déficit como desculpa para reduzir o Estado de bem-estar. Mas a crise
vai prosseguir por pelo menos mais alguns anos. Com a estagnação e o
desemprego, as forças que conduzem à reforma do sistema vão crescer.
Valor: Como o senhor avalia o modelo
de desenvolvimento do Brasil neste início de século? Como se compara ao modelo
coreano do século passado, que o senhor descreve como caracterizado por
empréstimos estatais, grandes corporações e um setor financeiro regulado?
Chang: Em meados do século XX, a Coreia,
dos anos 1960 até o início dos 1990, e o Brasil, dos anos 1930 até os 1970,
tinham níveis muito próximos de desenvolvimento. As diferenças foram: 1) o
Brasil não enfatizou suficientemente as exportações, o que o deixou vulnerável
a crises de balanço de pagamentos; e 2) o Brasil dependeu muito mais de
corporações transnacionais para o desenvolvimento tecnológico do que a Coreia,
que tinha um dos regimes mais restritivos do mundo para empresas estrangeiras.
Nesse período, ambos os países tiveram bom desempenho, embora a Coreia tenha
crescido mais rápido e com mais igualdade. Ambos os países se afastaram desses
modelos nos anos 1990, reduzindo o protecionismo, desmanchando a política
industrial e desregulando o setor financeiro. Os resultados foram melhores na
Coreia do que no Brasil, em que interesses financeiros forçaram o país a usar
taxas de juros altas para controlar a inflação. A elevação de preços foi
controlada, mas, com uma das taxas de juros reais mais altas do mundo, o país
teve muito menos investimento e, portanto, crescimento.
Valor: O afrouxamento monetário nos
Estados Unidos não colocou a economia de volta na trilha do crescimento, mas
talvez tenha evitado uma recessão de verdade. Agora o presidente Obama está
tentando a tática de geração de empregos. Será suficiente?
Chang: O afrouxamento monetário teve um
certo papel positivo para evitar que a crise fosse pior. Mas foi pouco eficaz
para salvar a economia, já que os bancos não usaram a liquidez aumentada para
emprestar a outras empresas. O resultado em investimentos e criação de empregos
foi muito fraco e os benefícios se concentraram no setor financeiro. Teria sido
mais eficiente um estímulo fiscal, cuja vantagem seria garantir que o dinheiro
vá para atividades que incentivam a produção e o emprego. Infelizmente, a
influência do lobby financeiro na política é tanta que o estímulo fiscal foi
considerado inaceitável. O plano de empregos de Obama é mais eficaz do que mais
outro afrouxamento, mas quase todos concordam que é muito tímido. Além do mais,
depois de perder os casos do déficit orçamentário e dos cortes de gastos, não
podemos nem ter certeza de que essa medida "insuficiente" vá passar
pelo Congresso.
