Por Marli Olmos | De Frankfurt
Sem medo de desculpar-se pela
paixão por carros, Booth, da Ford, receia que eles se transformem em
"commodities"
O
currículo do chefe da área financeira da Ford, Lewis Booth, chama a atenção.
Não só pela bem-sucedida carreira, que soma 33 anos na montadora americana, mas
pelo tom emocional do trecho em que ele diz ter "o negócio dos automóveis
no sangue" e que, por isso, "não pede desculpas por sua paixão por
eles". É bem provável que por isso o tema da conversa de Booth com alguns
jornalistas, na véspera da abertura do salão do automóvel de Frankfurt, tenha
passado longe das finanças para concentrar-se no carro em si. A estrela das
exposições internacionais está na berlinda porque a indústria ainda tenta
descobrir qual será o papel do automóvel na nova era de mobilidade humana.
No caso
de Booth, a paixão pelos carros vem do berço. Formado em engenharia, o
executivo inglês é filho de concessionário que vendia modelos das marcas Ford e
Austin and Morris em Liverpool. O executivo escolheu uma sala reservada do Ivory
Club, elegante restaurante na área central de Frankfurt, para reunir 11
jornalistas, vindos de sete países para a cobertura do salão: Estados Unidos,
França, Itália, Reino Unido, Espanha e Rússia, além do Valor ,
representando o Brasil. Levou junto outros dois executivos de peso na área de
desenvolvimento de produto: J. Mays, vice-presidente da área de desenho da
Ford, e Paul Mascarenhas, responsável por pesquisa e inovação.
O homem
que comanda as finanças da Ford sentou-se no centro da mesa em formato quadrado
que ocupou quase todo o espaço da sala parecida com uma biblioteca. Durante o
jantar em que se serviu carne suculenta (especialidade da casa), regada a vinho
- alemão e sul-africano -, Booth comandou a conversa. Quis saber o que os
jornalistas pensam sobre os projetos apresentados na prévia da exposição de
Frankfurt. E, apoiado, sobretudo, por Mays, outro que não esconde a paixão
pelos automóveis, revelou o medo de que carros comecem a se transformar em "commodities".
E como
seria o carro commodity? "É aquele que não ofende ninguém, mas que também
não exerce nenhuma atração", disse Booth. Os três executivos da Ford
mostraram que não estão alheios às mudanças de época, que hoje aproximam o
carro de um novo estilo de vida, voltado, sobretudo, à conectividade. Mas o
aumento da popularidade de modelos que não evocam a emoção de antigamente
parece machucar quem passou a carreira desenvolvendo máquinas de desejo.
"Sempre fizemos carros deslumbrantes", disse Booth.
As
incertezas em torno do modelo ideal surgem num momento em que a demanda nas
regiões onde a cultura do automóvel já tem uma longa história está estagnada.
As vendas se concentram nos países emergentes, onde boa parte dos consumidores
ainda vai estrear a carteira de motorista. Está, em boa parte, nas mãos desses
novatos a decisão sobre o formato e papel do carro do futuro.
O salão
de em Frankfurt, encerrado domingo, mostrou que os fabricantes decidiram
misturar possibilidades: do minúsculo veículo urbano que não polui ao carrão
que ainda faz o motor roncar. A indústria parece ter perdido referências. Não
sabe até que ponto o consumidor mudará critérios. Não se trata de descobrir
apenas o veículo ideal para as próximas gerações, mas, acima de tudo, saber se
elas vão querer usar carro.
Booth
concorda que o jovem de hoje não vê mais o automóvel como o de outras épocas. A
parafernália tecnológica que surgiu à sua frente, em forma de computador,
smartphones, entre outros, compete com o carro. "De qualquer forma, nossas
vendas continuam crescendo no mundo", disse.
Mudanças
profundas são, no entanto, inevitáveis. Além de não agredir o ambiente, o
veículo precisa, agora, oferecer conectividade. Ao dirigir cada vez mais em
baixas velocidades, o motorista quer aproveitar o tempo para usar computador e
celular dentro do carro, como se estivesse no escritório, em casa ou mesmo a
pé.
O
condutor do futuro também começa a sinalizar que, diante dessa necessidade de
se conectar com o ambiente externo, quer menos responsabilidade para fazer o
veículo funcionar.
A
Mercedes-Benz começa a vender seu novo Classe B com o chamado assistente de
prevenção de colisões. Disponível para velocidades acima de 30 quilômetros por
hora, um radar mede a distância dos veículos à frente e calcula a pressão
necessária para frear e evitar uma batida. "Perseguimos o objetivo de
criar um carro que não polua e que também não bata", diz o vice-presidente
de marketing da Mercedes, Philipp Schiemer.
A
indústria também já pesquisa a conexão dos veículos com as estradas para que,
por meio de sensores, se atinja velocidade compatível ao tráfego. E, diante da
tendência de dividir a locomoção com entretenimento, envio de e-mails e
conversas ao telefone, já se começa a discutir na Europa formas de restringir
essas atividades dependendo das condições externas. Se chover ou o motorista
tiver que entrar numa estrada perigosa à noite, por exemplo, as funções de
conectividade do veículo poderão ser interrompidas.
O tamanho
dos carros e o tipo de energia ideal ainda são incógnitas. Algumas empresas
começam a apostar em formatos minimalistas e se propõem a produzir veículos
para uma só pessoa. É o caso do protótipo elétrico Nils, da Volkswagen: mais
estreito, mais baixo e mais curto do que se vê rodando em qualquer rua do mundo
hoje.
Como boa
parte das pessoas está se deslocando para os centros urbanos, os fabricantes se
propõem a desenvolver modelos puramente urbanos, que servirão para o simples
ato de ir e voltar do trabalho. Como também apostam que a maior parte dos
motoristas terá um veículo urbano para o trabalho e outro para viajar com a
família, eles continuam oferecendo, ao mesmo tempo, projetos de carros
parecidos com os atuais, com a diferença de que o tamanho dos motores está
diminuindo para atender às novas leis ambientais.
Os
elétricos só aparecem nos mercados onde os governos oferecem incentivos em
forma de bônus para o consumidor e mesmo para o investimento feito pelo
fabricante. Isso já é uma realidade nos Estados Unidos, França e Israel. Mas a
indústria nem pensa em lançar esse tipo de veículo sem o apoio do Poder
Público, o que distancia os países emergentes dos elétricos e causa confusão em
relação a outras opções, como células de hidrogênio, solução ainda distante, e
mesmo o etanol, que ganhou fama como uma especialidade brasileira.
A questão
ambiental exige mais investimentos. Para o presidente mundial do grupo Daimler
e da Mercedes-Benz, Dieter Zetsche, nos próximos cinco anos a indústria não
deverá "fazer dinheiro" com a tecnologia de energias alternativas.
A indústria
também começa a investir mais em motores para adaptar-se às novas legislações
ambientais. Na Europa, as montadoras serão multadas, a partir do próximo, pelos
veículos com maiores níveis de emissão. Nos últimos quatro anos, o índice de
CO2 dos modelos novos produzidos na Alemanha baixou de 170 gramas por
quilômetros para 145. A meta é chegar a 130g de CO2 /km em 2012.
"Reduzir
o tamanho dos motores será inevitável diante dos novos desafios", destaca
o presidente da General Motors na Europa, Wayne Brannon. Uma das novidades
apresentadas pela Ford no salão de Frankfurt foi seu novo motor 1.0, que nada
tem a ver com o produto vendido no Brasil. Trata-se de uma inovação
tecnológica, que permite reduzir tamanho mantendo desempenho. Segundo a
montadora, a novidade lançada na Alemanha, que já começa a equipar o modelo
Focus, oferece o mesmo desempenho de um motor 1.6 convencional.
Mas a
tecnologia custa caro. "Um motor assim exige investimento de € 300
milhões, é quase como desenvolver um novo carro", afirma Andrew Fraser,
responsável pelo desenvolvimento na área de motores e transmissões da Ford
Europa. "Se antigamente o turbo era utilizado para deixar o carro mais
esportivo, hoje serve para melhorar consumo", diz o diretor de engenharia
da General Motors no Mercosul, Pedro Manuchakian.
O
automóvel também começa a deixar de ser propriedade particular. No chamado
"car sharing", uma ideia já usada na Europa, o motorista paga pelo
uso de um veículo compartilhado. Segundo dados da associação que representa as
montadoras na Alemanha (VDA), 300 cidades do país já trabalham com o sistema,
que tem cadastrados quase 200 mil usuários e 5 mil veículos.
As novas
estruturas e formatos que aparecem nos protótipos do futuro indicam que também
a indústria de fornecedores passará por uma revolução. Carros elétricos, por
exemplo, têm menos peças, materiais diferentes, como alumínio em toda a
estrutura, e assumem formas inovadoras, como portas em forma de asas.
Feiras
como a de Frankfurt, a maior do gênero, continuarão mostrando como a indústria
ainda patina para descobrir seu papel no novo cenário. No salão alemão, os
contrastes estavam por todos os lados. No gigantesco estande da Daimler, havia
fileiras do pequeno Smart elétrico, que agora oferece também bicicleta elétrica
como acessório. Perto dele, o imponente Mercedes SLK 55, lançamento cujo apelo
é o motor de 422 cavalos. Não muito longe, se fazia festa em torno do valente
458 Spider, da Ferrari, capaz de chegar aos 100 quilômetros por hora em 3,4
segundos e alcançar a velocidade de até 320 quilômetros por hora.
Até aqui,
o automóvel do futuro tem muitas faces. Mas os fabricantes não parecem
convencidos a mudar a fórmula radicalmente. Durante o jantar no Ivory Club,
J.Mays, que comanda a área de desenho da Ford, disse que a indústria vai, como
sempre, interpretar o desejo do consumidor: "Sabemos que fizemos a coisa
certa quando o carro consegue falar sobre o consumidor. É como fazer um filme.
Se o telespectador viaja na história é porque o produtor fez seu
trabalho."
Antes de
encerrar o encontro, Booth, o chefe das finanças, resumiu: "A importância
do carro verde e da economia de combustível continuará a crescer no mundo. Mas,
enquanto para alguns, Mustang é a definição de um carro, para outros, essa
definição é um modelo híbrido. Só que eu não consigo imaginar alguém sentindo
saudades do híbrido..."
