Por Chico
Santos, Marcelo Mota e Vera Saavedra Durão | Do Rio
Samuel Pessôa: “A inflação é
excesso de demanda, tem um pouquinho de commodities e tal, mas o grosso é
serviços”
"Não
consigo enxergar a indústria sobrevivendo no Brasil."
"Abrir
mão da indústria é quase que jogar fora a nossa história."
Dois
economistas de peso, um neoclássico e um keynesiano, convidados para debater a
posição do Brasil ante a crise mundial produziram as duas frases acima.
Samuel
Pessôa, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da consultoria Tendências, autor da
polêmica primeira frase, avalia que a opção da sociedade brasileira pela busca
da equidade se opõe à alternativa de crescer com mais velocidade, na medida que
pressupõe abrir mão do aumento da poupança. Com baixa poupança, não há como a
indústria do país competir com os chineses e asiáticos em geral, que poupam
muito e têm mão de obra mais barata do que a nossa. O quadro se agrava com a
maior produtividade das commodities atraindo torrentes de dólares e fazendo do
real sobrevalorizado um inimigo mortal da indústria.
O
desenvolvimentista Luiz Carlos Prado, do reduto keynesiano da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ex-conselheiro do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (Cade), autor da segunda frase, concorda com Pessoa que em uma
democracia a sociedade escolhe as opções, mas entende que o Estado "não é
passivo nesse processo" e "se articula com a sociedade no sentido de
ir levantando escolhas".
Entre essas escolhas, "a sobrevivência da
indústria é uma questão fundamental". Prado utiliza o exemplo chinês de
terceirizar para os vizinhos asiáticos a produção de bens industriais mais
intensivos em mão de obra para propor que o Brasil faça o mesmo na América do
Sul com países como Paraguai e Bolívia, liderando uma efetiva integração
comercial.
Quando o
debate chegou à inflação, mais discordância. Prado, fiel ao pensamento
keynesiano, entende que o Brasil precisa distribuir renda para criar demanda e
que a alta dos preços tem origem inercial. Para Pessoa, o que existe é carência
de oferta de bens.
"A
China está optando por um crescimento com mais desigualdade, é muito difícil
crescer rápido com igualdade"
A
discussão, anterior ao corte de 0,5% na taxa de juros pelo Banco Central (BC),
durou mais de duas horas e meia. A seguir, os principais trechos do debate.
Valor: Considerando a hipótese de
estagnação do mundo desenvolvido, o Brasil conseguiria, voltando-se ao mercado
doméstico, como a China, manter um certo padrão de crescimento razoável?
Samuel
Pessôa: Eu acho
que o Brasil tem capacidade de crescer. A China continua a trajetória dela, com
essa transição para o mercado de consumo interno que eles vão ter que fazer. A
minha leitura é que isso significa que commodity agrícola continuará em alta e
commodity mineral talvez não suba tanto.
Valor: Isso no médio prazo?
Pessôa: Cinco anos. Porque o investimento
vai cair um pouquinho, mas principalmente porque em commodity mineral a
resposta da oferta é maior. Nos próximos três anos, a produção de minério de
ferro no Brasil vai dobrar. E não vai ser só o Brasil que vai crescer, então o
preço vai cair. Mas eu acho que a gente vai continuar exportando muito minério
de ferro, muita soja, muita commodity. Esse viés da economia brasileira na
direção de ser um grande produtor de commodities, e uma certa regressão da
indústria, acho que é estrutural, não vai mudar. Eu acho que vai cair o
crescimento potencial nosso, porque uma parte dele é redução da taxa de
desemprego. Provavelmente, o que o país pode crescer está mais para 3,5% do PIB
ao ano do que para 4%.
Luiz Carlos Prado: “Não há dúvida
que a crise internacional vai reduzir o crescimento, pois o Brasil faz parte do
mundo”
Luiz
Carlos Prado:
Equacionada a questão inflacionária, com o Plano Real, a questão de crescimento
volta a entrar em pauta, ou seja, daqui por diante, qualquer que seja o partido
que estiver no poder vai ter que manter uma taxa de crescimento razoável. O que
mudou, e isso é um pouco curioso, foi a questão externa. No passado, o Brasil
não tinha como reduzir o tamanho relativo da sua indústria. Ou seja, para
sustentar uma taxa de crescimento, tinha que aumentar o tamanho da indústria
porque tinha que atender uma demanda doméstica nesse setor crescente, e se você
aumentasse via importação, rapidamente caminhava para uma crise cambial. Como a
gente ganhou espaço na área externa, de certa maneira é possível sustentar uma
taxa de crescimento um pouco mais elevada com algum grau de desarticulação da
indústria. E aí é onde entra o principal debate da sociedade brasileira. Que
tipo de composição de produção doméstica nós queremos?
Pessôa: Eu tenho uma discordância
básica: eu acho que a agenda ainda não é de crescimento, se sim de igualdade,
de equidade. Vai crescer o que der para crescer depois de atingir os objetivos
prioritários de equidade.
Valor: O sr. não acha que esse
aumento da igualdade tem levado ao crescimento?
Pessôa: Acho que não. Tem um
"trade-off" entre crescer mais e ficar mais desigual e crescer menos
com igualdade. Acho que a China está optando por um crescimento com mais
desigualdade. Acho muito difícil crescer rápido com igualdade. Acho que em mais
dez, oito anos a agenda vai passar a ser uma agenda de crescer. Porque a gente
tem esse fenômeno fantástico, maravilhoso, das classes C e D, que estão
entrando na sociedade de mercado. E acho que essa classe social, a médio prazo,
vai ser conservadora, vai querer menos Estado e mais crescimento econômico.
Prado: Eu só discordo em um ponto. É
interessante, você pega a literatura desde a década de 60, os clássicos, Celso
Furtado... um dos grandes pontos que se colocava era que a dificuldade de
crescimento do Brasil era pelo lado da demanda e isso tinha a ver com a má
distribuição de renda. Sem dívida nenhuma, quando você melhora a distribuição
de renda você melhora a demanda. O que ele (Pessôa) está dizendo é o seguinte:
tudo bem, melhora a demanda, mas eu não tenho poupança, então eu não tenho
oferta para atender e respondo a isso via importação.
"Nós
temos de pagar o preço que for necessário para termos uma sociedade mais
igual"
Pessôa: Exatamente. Se o mundo quiser me
financiar.
Prado: E esse talvez seja o ponto, tem
a ver com mecanismos de expansão dos investimentos, que é a essência do debate
sobre o crescimento no Brasil. Concordamos que precisamos aumentar o
investimento. O que gera o aumento do investimento, de onde ele vai vir, quem
vai financiar e como, essa é a natureza da discussão. Eu suspeito que hoje, talvez
você pudesse ter uma taxa de crescimento um pouco mais alta se você tivesse um
câmbio um pouco diferente.
Valor: A apreciação do real é sinal
de fraqueza da moeda brasileira, incapaz de defender a competitividade da
produção doméstica?
Pessôa: Acho que não dá para ter tudo na
vida. Eu não consigo enxergar a indústria sobrevivendo no Brasil. Eu acho que é
quase impossível a sobrevivência da indústria nos moldes que ela tem no Brasil.
Vou dar um exemplo: pegue a indústria automobilística. A indústria automobilística
está no Brasil há quase 60 anos. Ela existe na Coreia do Sul há 30 anos. É
metade do tempo. Por que é que nossa indústria é uma porcaria perto da
indústria coreana? Não é que seja ruim, é uma porcaria! Eu acabei de comprar um
carro coreano. É uma coisa impressionante o desnível.
Valor: Será que é porque a indústria
coreana é produto de pesquisa doméstica?
Pessôa: Não, eu acho que é porque na
Coreia se estuda muito e no Brasil não se e
studa. O coreano médio, se fizer a
prova do Pisa [medição internacional da capacidade do jovem de 15 anos de usar
seus conhecimentos para enfrentar a vida], ele está no topo. A média brasileira
é uma tragédia. O capital humano no Brasil é muito ruim. O custo de capital na
Coreia é muito mais baixo que aqui, porque eles poupam 36% do PIB e a gente
poupa 18%, 17%. Eu não vejo como a gente vai sustentar essa indústria. Só se
fechar a economia.
Valor: Como o sr. liga isso com o
câmbio?
Pessôa: Vamos voltar para a questão da
indústria, vamos pegar a indústria calçadista. Você tem lá o cara em Franca, no
interior de São Paulo, que está produzindo calçados. O empresário de Franca
acha que compete com o produtor de sapatos da China, mas ele está errado. Ele
compete com o produtor de soja de Rondônia. Porque se nós não produzíssemos
soja e nem minério, o câmbio seria R$ 5. O que estou dizendo é que dada a
produtividade que temos para produzir commodities e a produtividade que temos
para produzir sapatos, o câmbio que reflete a nossa vantagem comparativa em
commodities mata o produtor de sapatos. Então, o único jeito que eu tenho para
fazer sobreviver o produtor de calçado é fazer alguma coisa que imponha um
custo grande à produção de commodities.
Valor: O sr. então acha que essa
reprimarização não vai mudar?
Pessôa: Acho que é um fato permanente e
a gente deveria ser meio que passivo em relação a isso.
Prado: Eu concordo que a educação no
Brasil foi historicamente subfinanciada. Mas eu sou muito mais otimista quanto
ao potencial de crescimento brasileiro e eu acho que o Brasil não pode abrir
mão da indústria. Isso é quase que jogar fora nossa história, todo esforço que
se fez para transformar a sociedade brasileira. E, mais do que isso,
commodities, a longo prazo, não se sabe para onde irão as coisas. Você não tem
como voltar atrás se alguma coisa der errada. Aí eu coloco uma outra questão: a
China tem uma outra diferença com o Brasil, tem superávit em relação ao resto
do mundo, mas tem déficit com seus vizinhos. Ou seja, ela é integrada na
região. O Brasil tem uma posição diversa: déficit em relação ao resto do mundo
e superávit com referência aos seus vizinhos, o que dificulta o processo de
integração regional. Até que ponto seria viável o Brasil partir não apenas para
uma política industrial olhando para seu próprio umbigo, mas tentando integrar
os próprios vizinhos? Se nós não conseguimos fazer alguns produtos ao preço
necessário, por que não o Paraguai ou a Bolívia? Agora, seja lá o cenário que
for, câmbio é uma variável fundamental. A história mostra que toda vez que você
tem um câmbio excessivamente valorizado, isso gera problemas de
industrialização. Não necessariamente você tem que fazer uma taxa de câmbio
para sustentar qualquer tipo de indústria, mas certamente você tem que ter uma
política um pouco mais ativa dentro desse setor para que essa taxa de câmbio
seja compatível com a estratégia de manutenção de setores da indústria que você
julga necessário.
Valor: O sr. acha que o programa
Brasil Maior preenche de alguma forma essas necessidades?
Prado: Acho que é um começo, acho que
está muito aquém do que é necessário. Que você tem que fazer alguma coisa nessa
linha, não há dúvida, sou favorável a fazer mais. Ser mais ativo no que se
refere a câmbio e ser também ativo no que se refere a estratégias de política
industrial. O que eu acho é que nós temos que pagar o preço que for necessário,
não podemos abrir mão de ter uma sociedade mais igual.
Valor: O sr. concorda que, para
manter a indústria, as commodities têm que pagar um pouco desse preço?
Prado: Isso nós fizemos no passado com
o café. Teve o famoso confisco cambial, que cumpriu esse papel. Eu não estou
ainda convencido que você tem que fazer alguma coisa similar àquilo. O que eu
estou convencido é que você tem que ter uma política que compatibilize as duas
coisas. Eu compartilho, em parte, a visão do Samuel de que você vai ter
dificuldade pelo lado do investimento. Você vai ter que levar investimento,
portanto, vai ter que ampliar a linha de crédito. O desafio é como ampliar esse
"funding" - e aí tem um pouco de discordância teórica sobre se é
possível fazer um "funding" sem que você tenha previamente
poupança...
Pessôa: Acho que essa não é uma
discordância, não...
Prado: Não é uma discordância? Então
tudo bem. Acho que você vai ter que ampliar o "funding" e existe um
ponto do qual todo mundo compartilha: daqui por diante, os gastos de não
investimento do Estado têm que crescer a uma taxa menor do que o crescimento do
PIB, até porque não dá para crescer muito...
Valor: Estamos sentindo uma
convergência...
Prado: Só que não estou dizendo que
você tem que reduzir gasto social, pelo contrário, acho que isso é um ganho da
sociedade brasileira. O que estou dizendo é que nós temos que aumentar a taxa
de investimento pública e o "funding", que são os dois elementos para
investimento. Disso nós não escapamos. O problema é como fazer, onde fazer.
Pessôa: Acho que crescimento não é uma
coisa que eu, como economista, emita opinião. Acho que quem se pronuncia sobre
crescimento é a sociedade. Agora, sempre que quero crescer mais, custa mais.
Crescimento custa, crescimento dói. Ele exige envolvimento da sociedade e,
muitas vezes, a sociedade não está disposta.
Valor: O sr. concorda?
Prado: É claro que você tem que fazer
escolhas. Concordamos. Aliás, tenho que fazer escolhas para crescer e para não
crescer. O problema é que se você não cresce, as escolhas são ainda mais duras
do que quando você cresce. É claro também que você não pode crescer aquilo que
gostaria. Não posso crescer 10%, se não tenho determinados elementos para isso.
O que eu acho é que nós temos muitos ganhos de eficiência a fazer no Brasil,
desde gestão pública até vários mecanismos de ampliação de linhas e crédito.
Acho que temos espaço para crescer. As taxas de poupança no Brasil já foram
mais altas no passado e não há nenhuma razão para dizer que a sociedade
brasileira se alterou nesse sentido.
Pessôa: Quando a gente discute essa
questão da poupança, tem a questão teórica que não tem jeito de não enfrentar,
sempre vem. Tem aquele discurso que diz que tenho primeiro que ter a poupança,
para depois ter o investimento. Isso é uma proposição dos anos 30, uma coisa
superada. A gente sabe que a causalidade é do investimento para a poupança.
Você investe e a poupança vem. Agora, acho que tem um ponto, e talvez aí haja
uma discordância entre nós, acho que a institucionalidade vigente no Brasil faz
com que, pelo menos nos últimos anos assim tem funcionado, a causalidade é
inversa, o crescimento vem e junto com ele vem o investimento, reforçando ainda
mais o crescimento, e a poupança não vem atrás. Ou quando ela vem, é de forma
muito tímida, gerando um buraco que a gente tem que tapar com a poupança
externa. O que eu acho? Como a agenda é de equidade e não de crescimento,
sempre que o crescimento vem e o investimento vem, as demandas sociais vêm
atrás. E essas demandas sociais impedem que esse mecanismo, que permitiria uma
aceleração sustentada da nossa taxa de crescimento opere. Quando tenho que
abrir mão do meu consumo adicional, que é produzido pela possibilidade do
crescimento, não abro mão desse consumo e aí a poupança não vem atrás. E aí eu
sou bem mais pessimista nisso. Quando a gente olha o Estado brasileiro, tenho
uma avaliação que não há desperdício no Estado brasileiro. Se nós olharmos tudo
que cresceu de gasto público como proporção do PIB nos últimos 12 anos, o gasto
federal aumentou pouco mais de quatro pontos de porcentagem do PIB. Isso é
muita coisa, porque o PIB cresceu. Agora, mais de 80% desse aumento de gasto é
programa social, INSS, política de valorização do salário mínimo, investimento,
custeio de saúde e educação. Não é custeio da máquina. O custeio da máquina
caiu como proporção do PIB nesse período.
