A crise
financeira de 2008 foi a maior da história do capitalismo desde a grande
depressão de 1929. Começou nos Estados Unidos após o colapso da bolha
especulativa no mercado imobiliário, alimentada pela enorme expansão de crédito
bancário e potencializada pelo uso de novos instrumentos financeiros, a crise financeira
se espalhou pelo mundo todo em poucos meses. O evento detonador da crise foi a
falência do banco de investimento Lehman Brothers no dia 15 de setembro de
2008, após a recusa do Federal Reserve (Fed, banco central americano) em
socorrer a instituição. Essa atitude do Fed teve um impacto tremendo sobre o
estado de confiança dos mercados financeiros, rompendo a convenção dominante de
que a autoridade monetária norte-americana iria socorrer todas as instituições
financeiras afetadas pelo estouro da bolha especulativa no mercado imobiliário.
O
rompimento dessa convenção produziu pânico entre as instituições financeiras, o
que resultou num aumento significativo da sua preferência pela liquidez,
principalmente no caso dos bancos comerciais. O aumento da procura pela
liquidez detonou um processo de venda de ativos financeiros em larga escala,
levando a um processo Minskiano de "deflação de ativos", com queda
súbita e violenta dos preços dos ativos financeiros, e contração do crédito
bancário para transações comerciais e industriais. A "evaporação do
crédito" resultou numa rápida e profunda queda da produção industrial e do
comércio internacional em todo o mundo.
Com
efeito, no último trimestre de 2008 a produção industrial dos países
desenvolvidos experimentou uma redução bastante significativa, apresentando, em
alguns casos, uma queda de mais de 10 pontos base com respeito ao último
trimestre de 2007.
Mesmo os países em desenvolvimento, que não possuíam
problemas como seus sistemas financeiros, como o Brasil, também constataram uma
fortíssima queda na produção industrial e no Produto Interno Bruto (PIB). De
fato, no caso brasileiro, a produção industrial caiu quase 30% no último
trimestre de 2008 e o PIB apresentou uma contração anualizada de 14% durante esse
período.
Os
governos dos países desenvolvidos responderam a essa crise por meio do uso de
políticas fiscal e monetária expansionistas. O Fed reduziu a taxa de juros de
curto prazo para 0% e aumentou o seu balanço em cerca de 300% para proporcionar
liquidez para os mercados financeiros nos EUA. Políticas similares foram
adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Banco do Japão. Nos Estados
Unidos, o presidente Barack Obama conseguiu aprovar uma expansão fiscal de
quase US$ 800 bilhões para estimular a demanda agregada. Na área do euro, os
governos foram liberados das amarras fiscais do Tratado de Maastricht, sendo
autorizados a aumentar os déficits fiscais além dos limites impostos pelo
Tratado em consideração. Esforços similares foram realizados no Reino Unido e
nos países em desenvolvimento.
Na China,
por exemplo, o governo aumentou o investimento público - fundamentalmente em
infraestrutura - em mais de US$ 500 bilhões com o intuito de manter uma elevada
taxa de crescimento econômico. No Brasil, a expansão fiscal começou antes da
expansão monetária devido a um "comprometimento irracional" do Banco
Central (BC) com um regime de metas de inflação muito rígido. Nesse contexto, o
governo Lula aprovou um pacote de estímulo fiscal no fim de 2008, constituído
de aumento do investimento público, redução de impostos e aumento do salário
mínimo e do seguro desemprego. A redução da taxa de juros começou apenas em
janeiro de 2009, após o colapso da produção industrial e da disseminação de
rumores quanto a possível demissão do presidente do BC. Como resultado da
demora no relaxamento na política monetária, o PIB declinou 0,7% em 2009.
Apesar da
forte queda da produção industrial e do PIB tanto nos países desenvolvidos como
nos países em desenvolvimento, a severidade da crise de 2008 ficou muito aquém
dos resultados catastróficos verificados na década de 1930. No fim de 2009, a
economia americana começou a apresentar sinais positivos de recuperação,
apontando para um crescimento modesto em 2010. França e Alemanha saíram da
recessão técnica em meados de 2009, o mesmo ocorrendo com o Reino Unido no
último trimestre desse ano.
Os países
em desenvolvimento tiveram um desempenho econômico muito superior ao dos países
desenvolvidos durante a crise. O crescimento econômico da China foi de 8,5% em
2009, mostrando uma pequena redução com respeito a 2008, quando a economia
cresceu 9%. A performance econômica da Índia também foi boa. Após uma expansão
de 7,3% do PIB em 2008, o crescimento foi reduzido para 5,4% em 2009. A
performance econômica do Brasil durante a crise não foi tão boa como a da China
e da Índia. Após um crescimento robusto de 5,1% em 2008, o PIB caiu 0,7% em
2009. Em 2010, contudo, a economia brasileira apresentou uma forte recuperação,
apresentando um crescimento econômico superior a 7%. Entre os Brics, apenas a
Rússia apresentou uma queda forte do nível de atividade econômica.
Com
efeito, o PIB da Rússia caiu 7,5% em 2009, após um crescimento de 5,6% em 2008.
A
intensidade da crise financeira de 2008 coloca duas questões fundamentais para
os economistas e formuladores de política econômica. A primeira questão se
refere às origens da crise. A segunda se refere às consequências dessa crise
para a economia mundial. Sobre essas questões se formou uma "sabedoria
convencional", a qual será detalhada na sequência, mas que apresenta
respostas essencialmente incorretas para as mesmas.
No que se
refere à primeira questão a "sabedoria convencional" afirma que a
crise financeira de 2008 foi apenas o resultado de uma regulação financeira
inadequada, combinada com uma política monetária muito frouxa conduzida pelo
Fed durante a administração Greenspan. Se assim for, então não será necessária
a implementação de políticas que revertam a tendência ao aumento da
desigualdade na distribuição de renda nos países desenvolvidos, verificada nos
últimos 30 anos. Uma mudança limitada na regulação financeira e a redefinição
do regime de metas de inflação de maneira a incluir a estabilização dos preços
dos ativos financeiros como um dos objetivos da política monetária, por
intermédio de uma espécie de "regra de Taylor ampliada", seria
suficiente para evitar uma nova crise financeira no futuro.
No que se
refere à segunda questão, a "sabedoria convencional" estabelece que a
crise de 2008 foi apenas um desvio temporário no curso normal de eventos (um
momento Minsky), de tal forma que, no futuro próximo, as economias capitalistas
irão retomar a trajetória de crescimento observada antes da crise. O
crescimento mundial poderá ser novamente puxado pela expansão de crédito nos
Estados Unidos e a política econômica poderá voltar a ser conduzida com base no
assim denominado "novo consenso macroeconômico", o qual estabelece
que o objetivo fundamental, se não o único, da política macroeconômica é a
estabilidade da taxa de inflação.
A crise
financeira de 2008 não foi apenas o resultado da combinação perversa entre
desregulação financeira e política monetária frouxa. Essas são apenas as causas
próximas da crise. Mas existe uma causa mais fundamental, qual seja: o padrão
de capitalismo adotado nos Estados Unidos e na Europa a partir do final da
década de 1970, o qual pode ser chamado de "capitalismo neoliberal".
Entre 1950 e 1973, as economias capitalistas avançadas vivenciaram uma
"época de ouro" de crescimento econômico, no qual a distribuição
pessoal e funcional da renda era progressivamente mais equitativa, a taxa de
acumulação de capital era mantida em patamares elevados devido à existência de
um ambiente macroeconômico estável (inflação baixa, juros baixos, taxas de
câmbio estáveis) e forte expansão da demanda agregada. Além disso, a taxa de
desemprego era inferior a 4% da força de trabalho em quase todos os países
desenvolvidos (exceto, curiosamente, nos Estados Unidos). Durante esse período,
os mercados financeiros eram pesadamente regulados, a movimentação de capitais
entre as fronteiras nacionais era bastante restrita, as taxas de câmbio eram
fixas com respeito ao dólar americano e os salários reais cresciam
aproximadamente ao mesmo ritmo da produtividade do trabalho.
A
combinação entre estabilidade macroeconômica, crescimento acelerado e baixo
desemprego permitia que os governos dos países desenvolvidos operassem com
baixos déficits fiscais e uma dívida pública reduzida como proporção do PIB. O
"Estado do Bem-Estar Social" não representava um fardo para as contas
públicas.
Esse
"capitalismo socialmente regulado" apresentava um regime de
crescimento do tipo "wage-led", ou seja, um regime no qual o
crescimento dos salários reais (num ritmo igual à produtividade do trabalho)
permitia uma forte expansão da demanda de consumo, a qual induzia as firmas a
realizar um volume elevado de investimentos na ampliação de capacidade
produtiva, ao mesmo tempo em que mantinha as pressões inflacionárias
relativamente contidas devido à estabilidade do custo unitário do trabalho.
Com o
colapso do Sistema de Bretton Woods e os choques do petróleo em 1973 e 1979, o
ambiente macroeconômico muda radicalmente e o mundo desenvolvido passa a
conviver com o fenômeno da "estagflação". Esse ambiente
macroeconômico permitiu o ressurgimento daquelas doutrinas liberais.
Após a
eleição de Margareth Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados
Unidos, as políticas econômicas nos países desenvolvidos foram progressivamente
pautadas pelos motes da desregulação, privatização e redução de impostos. Os
mercados financeiros foram liberalizados, os controles de capitais foram
abolidos nos países desenvolvidos e os impostos foram reduzidos, principalmente
sobre os mais ricos. Os sindicatos de trabalhadores foram deliberadamente
enfraquecidos pelas políticas adotadas por Reagan e Thatcher, registrando-se
uma forte redução da filiação sindical da força de trabalho.
O
resultado macroeconômico desse novo "padrão de capitalismo" foi uma
crescente desigualdade na distribuição funcional e pessoal da renda, a medida
que os salários passaram a crescer num ritmo bem inferior ao da produtividade
do trabalho e o sistema tributário perdeu, em vários países, o seu caráter
progressivo. O aumento da concentração de renda e o crescimento anêmico dos
salários reais foi o responsável pela perda do dinamismo endógeno dos gastos de
consumo, notadamente nos Estados Unidos, os quais passaram a depender cada vez
mais do aumento do endividamento das famílias para a sua sustentação a médio e
longo prazo.
Nesse
contexto, a desregulação dos mercados financeiros tornou-se funcional, uma vez
que a mesma permitiu um aumento considerável da elasticidade da oferta de
crédito bancário, viabilizando assim o crescimento do endividamento das
famílias, necessário para a sustentação da expansão dos gastos de consumo. O
aumento extraordinário do crédito bancário resultou num processo cumulativo de
aumento dos preços dos ativos reais e financeiros, permitindo assim a
sustentação de posturas financeiras cada vez mais frágeis (especulativa e
Ponzi) por parte das famílias, empresas e bancos.
O regime
de crescimento "wage-led" fora substituído por um regime
"finance-led". Daqui se segue que no "capitalismo
neoliberal" as bolhas e a fragilidade financeira não são
"anomalias" no sistema, mas parte integrante do seu modus operandi.
No que se
refere à tese de que a crise de 2008 seria apenas um desvio temporário da
trajetória de crescimento de longo prazo das economias capitalistas, os eventos
ocorridos depois de 2009 parecem apontar claramente para a falsidade dessa
conjectura.
Com
efeito, a crise de 2008 não foi apenas um "curto circuito" na máquina
capitalista, o qual poderia ser corrigido por intermédio da intervenção do
Estado no "mecanismo de ignição" das economias capitalistas. Isso
porque o regime de crescimento do tipo "finance-led" teve como
contrapartida uma elevação significativa do endividamento do setor privado nos
anos anteriores a crise de 2008.
Considerando
apenas os países da área do euro, constatamos que entre 1997 e 2008, a dívida
das empresas não financeiras passou de 250% para 280% do PIB, o endividamento
dos bancos aumentou de 190% para 250% do PIB e o endividamento das famílias
aumentou em quase 50%.
Após o
colapso do Lehman Brothers o setor privado nos países desenvolvidos iniciou um
processo de "deflação de dívidas", no qual a "propensão a
poupar" dos agentes privados é aumentada com o intuito de permitir uma
redução do estoque de endividamento. Esse aumento da propensão a poupar do
setor privado atuou no sentido de anular (parcialmente) o efeito sobre a produção
e o emprego do aumento dos déficits fiscais.
O
resultado combinado do aumento da propensão a poupar do setor privado e redução
da poupança do setor público foi uma pequena recuperação do nível de atividade
econômica e uma "socialização na prática" de parcela considerável da
dívida privada, transferida agora para o setor público. Essa "socialização
das dívidas privadas" é uma das causas da crise fiscal da área do Euro, a
qual, na ausência de uma monetização parcial do endividamento do setor público
dos países por ela afetados, irá resultar em vários anos de contração fiscal,
retardando assim a recuperação econômica do mundo desenvolvido. A perspectiva
para os países da área do Euro (e em menor medida para os Estados Unidos) é de
vários anos de estagnação econômica.
Em suma,
a crise financeira de 2008 foi o resultado do modus operandi do
"capitalismo neoliberal" implantado no final da década de 1970 e os
seus efeitos sobre o nível de produção e de emprego nos países desenvolvidos
serão duradouros devido ao elevado endividamento do setor privado, gerado por
um regime de crescimento do tipo "finance-led".
José Luís
Oreiro
Professor
do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, diretor da Associação
Keynesiana Brasileira e co-editor do livro "The financial crisis: origins
and implications", Palgrave Macmillan, 2011. E-mail: joreiro@unb.br.
