É inegável a magnitude da
intervenção do Estado na economia brasileira, seja do ponto de vista do peso do
setor produtivo estatal, seja da enorme capacidade de controle de fundos
destinados ao financiamento da acumulação de capital. No entanto, é possível
constatar que não ocorreu no Brasil, nos últimos anos, nenhum processo de
“estatização”: nem o Estado ampliou sua participação relativa na propriedade
dos meios de produção, nem mesmo elevou significativamente sua fatia na
apropriação do excedente, em função do seu maior poder fiscal.
Em síntese, não se pode
nem desconhecer a importância crucial do Estado no capitalismo brasileiro nem,
por outro lado, ignorar os limites precisos de sua intervenção.O que nos aflige é a
forma de lidar teoricamente com este problema. Não pretendemos nos limites deste
simpósio tentar resolvê-lo, mas apenas indicar alguns caminhos.
O ponto de partida pode
ser tomado da contraposição entre capitalismo concorrencial e capitalismo
monopolista. Poderíamos dizer que a diferença específica entre eles reside na
forma distinta assumida pela dinâmica da acumulação. Em outras palavras, no
capitalismo concorrencial a acumulação de capital é autoregulada, no sentido de
que a concorrência entre os diversos capitais estabelece uma tendência à
equalização da taxa de lucro. Esta tendência é contrariada por uma
diferenciação destas mesmas taxas, de modo que, no seu movimento, o capital
redistribui-se continuamente pelos vários setores, fixando-se neste processo
novos padrões de divisão social do trabalho. Vale dizer, a diferenciação da
estrutura produtiva aparece como expressão deste movimento de contínua
redistribuição setorial dos capitais. Essa diferenciação – desenvolvimento de
novos setores e reorganização dos existentes – é a forma pela qual se
desenvolvem, no capitalismo, as forças produtivas. Se quisermos seguir o
ensinamento de Schumpeter, podemos afirmar que a livre concorrência, assim
entrevista, não é um processo de restabelecimento do equilíbrio, senão uma
forma de ir rompendo, sem cessar, a rotina da vida econômica. Esse processo, no
entanto, não é linear, senão perpassado por oscilações cíclicas, que expressam
momentos diferentes do movimento da acumulação de capital. A expansão é o
momento de aceleração da taxa de acumulação, com simultânea diferenciação da
estrutura produtiva.
A crise é o momento de
desvalorização e de queima de capital, implicando em reacomodação das novas
relações intersetoriais. É importante reter o que significa reacomodação das
novas relações intersensoriais. No momento de crise, a desvalorização e queima
de capital não se processa homogênea ou uniformemente. Assim, longe de
equalizar as taxas de lucro, promove ao contrário, seu reordenamento e
diferenciação em relação aos investimentos futuros. Em cada setor preexistente
a fração do capital que logrou resistir à crise vê subir progressivamente sua
taxa de lucro, como resultado da destruição do velho capital, o que enseja uma
tendência à concentração e prepara a recuperação futura. Entretanto, a taxa de
lucro nos setores existentes, apesar da concentração crescente, tende a ser
inferior à rentabilidade esperada do investimento nos setores novos, como
reflexo das inovações técnicas e da abertura de novas fronteiras criadas no
bojo da expansão anterior. Configura-se, assim, a potencialidade de uma
nova expansão, com base num novo espectro de taxas de lucros setoriais. Desta
forma, no capitalismo concorrencial, a própria crise engendra a recuperação e
prepara uma nova etapa expansiva, pela ação de mecanismos estritamente
econômicos.
Isto posto, é necessário fazer
referência a uma das dimensões fundamentais do processo de autoregulação do
capital, qual seja, o mecanismo de regulação dos salários. Na expansão a
dilatação da produtividade social do trabalho (proporcionalmente superior ao
movimento da massa de salários) garante a determinação de uma margem bruta de
lucros capaz de viabilizar a subida contínua da taxa de acumulação. Na crise, o
desemprego promove uma forte rebaixa da taxa de salários. Apesar disto, esta
rebaixa é incapaz, por si só, de compensar a violenta quebra das margens de
lucro, que resulta fundamentalmente da contração ainda mais forte do volume das
inversões, decorrente do colapso momentâneo da taxa de lucro esperada. No
entanto, à medida que se processa a queima e concentração de capital, as
margens de lucro vão-se-recompondo, enquanto o desemprego geral impede a subida
concomitante da taxa de salários.
Vejamos agora de que modo se passam
as coisas no capitalismo monopolista. Em primeiro lugar, desaparece a tendência
à perequação da taxa de lucro entre os diversos setores. Isto porque numa
estrutura monopolista consolidada surge barreiras à entrada, de modo que
o capital vê bloqueado o seu movimento intersocial. Desta forma, tende a se
cristalizar um espectro de taxas de lucro, cujo perfil e variabilidade dependem
do grau de concentração e do poder monopolístico de cada setor. Desta forma, à
primeira vista, os excedentes de capital poderiam ficar represados no interior
de cada setor, no que a taxa de rentabilidade esperada tenderia a se deprimir,
levando à possibilidade de crise, com disrupção da estrutura monopólica (guerra
de preços etc.). Todavia, nada disso ocorre, pois os obstáculos à mobilidade
intersetorial do capital são superados por uma nova forma de mobilização
que se consubstancia no surgimento de uma nova órbita: a financeira. É necessário, portanto, que o capital
assuma sua forma mais abstrata e portanto mais desenvolvida para que a
acumulação possa de novo fluir livremente. Será exatamente no novo contexto da
órbita financeira que se processará, de modo distinto, a tendência à equalização
da taxa de lucro.
É claro que as formas concretas que
assume a órbita financeira podem variar em cada momento histórico do
desenvolvimento capitalista. Assim, por exemplo, em vários casos o capital
bancário foi dominante na articulação entre a órbita real e financeira
(sobretudo até a grande depressão).
A partir do pós-guerra, surge o
grande conglomerado que agiliza a diversificação setorial, dentro do mesmo
bloco de capital. No primeiro caso, o capital bancário distribuía sua
participação entre empresas de vários setores produtivos, de modo a abrir os
canais indispensáveis à mobilidade do capital. É neste sentido que o capital
bancário impõe sua predominância. No caso do grande conglomerado, o capital
bancário é dispensado desta função, desempenhada agora pela empresa-holding que determina a alocação dos
fundos disponíveis em função de uma estratégia global do bloco de capital que
controla. Desta forma, a equalização da taxa de lucros se verifica entre blocos
de capital, enquanto a mobilidade do capital se processa no interior de cada
bloco de empresas e não mais diretamente entre os setores produtivos (onde a
heterogeneidade de taxas de lucro pode permanecer).
Isto não implica um arrefecimento da
concorrência intercapitalista. Contrariamente, ela se agrava pela luta feroz
entre os grandes blocos de capital. Agora todos são fortes. Nas etapas de
expansão, todos se lançam à conquista de novos mercados e à introdução de
inovações técnicas, configurando uma reação em cadeia. Neste momento, a
economia capitalista parece crescer sem fricções, criando-se uma fronteira de
expansão, como resultado desta aceleração conjunta da taxa de inversão. Nesta
hora é possível o atendimento de todos os interesses. Se neste momento a
interferência do Estado cresce, aumentando sua capacidade de direcionamento da
acumulação pela redistribuição da chamada “poupança”, ela é naturalmente
encarada como legítima e benfazeja pelo próprio capital monopolista, posto que
se destina a promover a reprodução do próprio sistema, livre de fricções
sérias. Mas chega o momento em que a expansão encontra seus limites, quando, no
afã individual de se colocar à frente do processo de expansão, o conjunto de
empresas gera capacidade ociosa não planejada, o que vem deprimir a taxa de
inversão, sobrevindo a crise.
Como distribuir o ônus da crise?
Como restabelecer a divisão dos mercados agora mais curtos? Como distribuir os
riscos? Como arbitrar a desvalorização do capital entre os blocos? E,
finalmente, por meio de que mecanismos poderia ser gerada uma nova etapa de
expansão?
Parece ter ficado claro que a
economia monopolista não dispõe de formas de auto-regulação. No entanto, apesar
disso, o capitalismo do século XX não foi abalado por uma sucessão contínua de
crises catastróficas. Como explicar isto? Na verdade, as funções de regulação
passam a ser exercidas no âmbito do próprio Estado. Com isso não queremos
dizer, é bom advertir, que o Estado tenha-se transformado num supermecanismo externo
de regulação, como sugere a interpretação corrente, de origem keynesiana.
Não se trata de caracterizar o Estado no capitalismo monopolista pelas suas
funções, quer dizer, como “Estado intervencionista”, o que supõe, na verdade,
uma relação de exterioridade entre Economia e Política. Ao contrário, no capitalismo
monopolista há uma politização da economia, no sentido de que tanto a forma da
concorrência intercapitalista como a forma das relações entre capital e
trabalho são constituídas no Estado. Isso, a nosso ver, explica o paradoxo
de que nenhum conflito pode-se subtrair à presença do Estado, e, ao mesmo
tempo, a articulação dos interesses é fugaz e circunstancial. Diante disso,
necessariamente toda a crise econômica se transfigura numa crise política. Em
suma, é deste ponto de vista que adquire sentido o conceito de capitalismo
monopolista de Estado.
Neste quadro, como podemos recolocar
o problema da “estatização” e seus limites? Sem querer simplificar a questão,
poderíamos dizer que a “estatização” é, na realidade, o epifenômeno das novas
formas de regulação encarnadas no Estado e que seus limites estão dados pelas
necessidades da reprodução conjunta do próprio capital monopolista. Estas
necessidades não permitem que o Estado rompa “de dentro” os interesses privados
que nele estão substanciados, transformando o capitalismo em seu contrário.
Finalmente, vamos tocar uma questão
que aliás esteve subjacente nas demais exposições. É possível, a partir do que
foi discutido sobre o capitalismo monopolista de Estado, oferecer algumas
sugestões sobre sua problemática no Brasil?
Em primeiro lugar, o capitalismo
monopolista de Estado aqui se instaura ao fim do ciclo Juscelino, que marca a
última fase da industrialização. Aí foram completadas as bases técnicas
necessárias à autodeterminação do capital (base produtiva pesada de bens de
produção), cristalizadas no estabelecimento de relações entre os Departamentos
de Bens de Produção, Bens de Consumo Assalariado e Bens de Consumo Capitalista,
o que impõe uma dinâmica especificamente capitalista ao processo de acumulação.
Explicando melhor, é verdade que a presença dominante de monopólios marca,
desde o início do século, nossa estrutura industrial; mas não se pode pensar em
capitalismo monopolista de Estado antes do fim da industrialização, quando se
configura uma estrutura monopólica capaz de determinar o caráter da
acumulação.
O capitalismo monopolista de Estado
assume no Brasil características particulares decorrentes da própria
industrialização tardia. De um lado, a estrutura monopolista é marcada pela
existência de um setor produtivo estatal na indústria de base e pela
profundidade do processo de internacionalização do sistema produtivo, e
conseqüentemente por uma fragilidade congênita do capital monopolista nacional.
É a partir destes traços que podemos entender a natureza da função reguladora
do Estado na economia brasileira.
Do ponto de vista estrutural maior,
essa função impõe ao Estado a presença de um setor produtivo estatal capaz de
apoiar em forma negociada e, portanto, conflitiva as grandes empresas
internacionais, e ao mesmo tempo proteger o capital nacional, regulando seu
avanço em direção à monopolização, porém de forma contraditória. Evidentemente,
em situação de expansão acelerada, as fricções são resolvidas de forma
positiva. Em situação de crise, porém, o caráter conflitivo e contraditório
desta associação se traduz num arrefecimento da capacidade reguladora do
Estado. Não se trata, porém, apenas de um conflito desencadeado a partir de
interesses gerais de cada segmento empresarial, como se cada um deles
pretendesse fixar um caminho para a expansão, necessitando, para isso, submeter
os demais. O problema na realidade é muito outro: em torno de cada projeto
definido pelo Estado, há que compor interesses específicos das empresas de cada
segmento. Ocorre que nenhum dos interesses é capaz de se impor, viabilizando o
objetivo fixado pelo Estado. Nestas circunstâncias, o Estado se vê dardejado
por uma onda de solicitações contraditórias que é incapaz de atender e
conciliar.
Alguns pontos merecem um exame mais
apurado, na tentativa de desfazer equívocos. Em primeiro lugar, o chamado setor
produtivo estatal não possui autonomia financeira suficiente para saltar à
frente e liderar a expansão futura. Isto porque, desde logo, não há nenhuma
articulação orgânica entre as várias empresas públicas que atuam como
oligopólios isolados, de modo que não há a possibilidade de uma gestão conjunta
de recursos que permitisse a centralização do capital e sua canalização para
novos investimentos. Mais que isso, dado o comportamento das empresas, não há a
possibilidade de fixação de prioridades que privilegiassem certos programas de
inversão em detrimento de outros.
Alguém poderia objetar que o Estado
teria condições de transferir recursos fiscais para reforçar o poder de
acumulação de suas empresas. Mas aí também o Estado se vê às voltas com
solicitações da empresa privada, que reivindica sua parte no bolo. O aturdido
Leviatã assiste, de mãos atadas, o encurtamento súbito de seu poder financeiro
e é surpreendido por acusações de promover a estatização desenfreada.
Por outro lado, a grande empresa
internacional, diante da crise mundial, mantém um comportamento cauteloso: não
está disposta a se envolver em projetos por demais ambiciosos, nem a investir
sem que lhe sejam oferecidas vantagens de monta. Não está comprometida com os
nossos destinos, como potência capitalista, mas sabe muito bem que o avanço do
capitalismo no Brasil não será logrado sem sua larga participação. Nestas
condições, é utopia crer que será possível dinamizar o capitalismo ferindo os
interesses fundamentais da grande empresa internacional.
